quinta-feira, setembro 28, 2006

Ensinar é preciso




Nos anos 70, as crianças aprendiam a ler aos sete anos, quando começavam a vida escolar. Por isso, considero um privilégio o fato de eu ter aprendido a ler e a escrever aos cinco anos. E como se fosse uma brincadeira, já que a minha irmã, um ano e meio mais velha, voltava da escola e queria me ensinar tudo que ela havia aprendido. E do mesmo jeito que a professora fazia: “Hoje vamos aprender uma letrinha muito bonitinha, que tem uma perninha no final....” e escrevia na lousa a letra “a”.

Quando meus pais perceberam, a menina de sete anos já tinha me alfabetizado. Por isso, no ano seguinte, quando entrei na escola para valer, fiz tudo com o pé nas costas. E quase todos os anos foram assim, já que estudávamos na mesma escola. A minha irmã me ensinava tudo o que iria aprender no ano seguinte.

Talvez a vocação da Malu pela carreira acadêmica tenha se manifestado nesta época. Sempre gostou de explicar as coisas, ensinar e disseminar tudo o que ela conhece. Depois da faculdade de biologia, fez mestrado, doutorado e se tornou professora na Universidade Federal do Pará, onde trabalha com botos, papagaios e qualquer bicho que aparecer pela frente, até com uma cobra que ela achou atropelada numa das ruas de Belém.

Não foi fácil para ela largar a vida em São Paulo, onde tinha a mim e meus pais, amigos e toda a estrutura urbana da maior cidade do Brasil. Mas o amor à profissão falou mais alto, o marido, Jacques, foi junto com ela e eu assinei embaixo a decisão, porque acredito que é sempre bom tentar, pelo menos para saber se vale a pena. Se ela não se arriscasse nessa empreitada, ela nunca saberia que é lá que pode exercer muito do que aprendeu até então: ensinar, estudar os bichos e ser útil às pessoas.

De médico e louco....




Todo mundo tem um pouco. Eu custava a entender, até há pouco tempo, por que as pessoas se automedicavam, sabendo de todo o risco que corriam. Funcionou bem para um, não quer dizer que funcione para o outro. Médico, louco, jornalista, engenheiro, biólogo, advogado – todo mundo sabe disso. Mas de uns anos para cá, com a institucionalização da medicina de grupo – um atestado à incompetência do governo em prover bons serviços de saúde – entendi melhor o porquê desta troca de remédios como se fossem receitas de bolo.

Para marcar a consulta, começa o drama: a agenda do bacana é mais ocupada que a do presidente, e daqui a quatro meses você pode achar uma vaga. Até lá eu já morri, melhor procurar outro, que só atende das 14h às 16h, mas tem vaga esta semana. Ok, fazer o quê, preciso resolver o problema, negocio no meu trabalho.

Fico estarrecida em perceber como um médico marca um paciente a cada 15 minutos. Será que qualquer problema pode ser resolvido neste prazo? Claro, se ele mal olhar no seu rosto, mal perguntar o motivo da consulta e na seqüência já te encaminhar para uma bateria de exames. Ah, e no laboratório que ele indicou, pois os outros não prestam. Sabe como são essas coisas de saúde, tem que escolher um lugar confiável.

Te viram pelo avesso e você volta no semideus que te atendeu (alguns são deuses mesmo) e aí ele pode dar uma lista de doenças que você pode ter, de acordo com os exames, claro, pois o cara nem desceu do pedestal para enxergá-lo como um todo. Você é uma garganta, um estômago, um pulmão ou um par de olhos, mas nunca tudo isto junto.

O pior de tudo é que se paga caro pelo convênio, os médicos recebem um valor miserável por consulta, e você não passa de um número. Fingimos que estamos sendo assistidos, eles fingem que atendem, e quem lucra é a empresa. Será que a saúde deveria ser banalizada assim? Por isso passo a dar credibilidade para a sabedoria popular. Hoje mesmo vou tomar omeprazol para o estômago, que a minha irmã (bióloga) me indicou.

terça-feira, setembro 12, 2006

Todo sobre mi madre

Existe um senso comum sobre as mães. São abnegadas, padecem no paraíso, fazem tudo por seus filhos, lutam por eles como verdadeiras leoas. A verdadeira personificação do conforto, do carinho, daquele ombro que você pode chorar em qualquer momento. Mas algumas ainda se diferenciam também pela generosidade, como é o caso da minha. Só que nem sempre as mães que se enquadram nessa categoria se limitam em exercer a generosidade somente para os filhos.

A minha nasceu desprendida. Desde a humilde infância era capaz de dar a roupa do corpo para outra criança ainda mais desprovida de recursos. Quando ela era atendente em um posto de saúde, antes de sair para trabalhar, eu mesma revistava os bolsos dela para me certificar de que não tinha dinheiro algum, senão ela voltava sem nada – doava sempre para algum doente sem recursos. Por isso, ela nem se importou quando minha irmã pediu para trazer uma amiga para dormir em casa por uns 15 dias.

A tal amiga vinha da Argentina e as duas se conheceram em Florianópolis, naquela época que nossos hermanos invadiram nossas praias. Filha de mãe depressiva e herdeira do mesmo mal, Laura queria tentar a vida em São Paulo longe da família, para fugir dos próprios problemas.

Minha mãe a recebeu com carinho, acomodou-a entre as nossas camas de tal forma que, se uma esticasse os braços, a outra tinha de se encolher tal qual um caramujo. Não demorou um mês para que a nova habitante engordasse 10 quilos em casa, à custa nossa, claro, porque ela tinha só 20 anos, não tinha emprego, dinheiro, formação, educação, nada. Engordar desse jeito implica não caber nas próprias roupas. E é claro que a folgada começou a usar as roupas da minha mãe. E sem autorização.

Quem ficou louca com a invasão de guarda-roupa fui eu. Minha mãe? Nem te ligo....deixa, coitada, ela está precisando....Perto desse sentimento de pena, não só da Laura, mas de toda a humanidade, vem junto um sentimento de tolerância natural. Nunca vi ninguém aceitar melhor as limitações, defeitos e problemas do ser humano como a minha mãe. Consegue ver sempre o lado bom das situações e das pessoas, mesmo que ele esteja bem escondido.

Ainda estou longe de exercer toda essa tolerância e generosidade como ela. Mas certamente, se ela não fosse assim, eu estaria num patamar muito mais baixo. Tanto que eu não tive coragem de mandar a argentina abusada de volta para onde veio, pois os 15 dias se prolongaram por seis meses. Muito menos minha mãe ou minha irmã. Quem concretizou o desejo de todos foi meu pai, cuja generosidade tem limites. Pelo menos de fronteira.